terça-feira, 28 de junho de 2016

lacuna

Pacientemente aguardei que as palavras viessem. Não comi, não bebi. Não coloquei música para tocar com medo de que isso atrapalhasse. Fiquei quieto, em silêncio, com as mãos no teclado.
Logo me dei conta de que era isso que eu diria naquele momento: o próprio momento. Da beleza própria que há na minha própria falta de argumentos, narrativas. Se não sei o que dizer, eu adivinho.

sexta-feira, 27 de março de 2015

Vestiu sua camisa cor-de-rosa e saiu na chuva. Palavras e sentidos nos bolsos. Uma alegria quase triste. Ansiedade feito saudade. As mensagens de celular faziam vibrar seu peito de poeta e as gotas que pingavam do seu guarda-chuva preto deixavam seu efêmero rastro pelo metrô. Muitas pessoas em seus celulares... Haveriam mais peitos pobres que vibravam de paixão naquele instante? Talvez não sejam tempos tão secos assim. São quase 18h30 e ainda faltam duas estações. Chegará até a Consolação com um ligeiro atraso e adiantado de úmidas declarações de afeto.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

da sutileza da vida

Suspirou.
E antes de se deitar desejou ardentemente que o dia seguinte fosse um dia bom. Dizem que homens que suspiram percebem melhor os caminhos.
Acontece que nem sempre damos conta de que um dia foi realmente bom.
Se você passa por uma árvore e uma folha cai nos seus cabelos você percebe?
Se uma folha cai nos seus cabelos, este é um dia bom. A vida faz afagos mais sutis que o beijo de um beija-flor.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

dramaturgia solta 1.

Homem 2 entra, fica olhando de longe para Homem 1 até que toma coragem e senta-se com ele.

Homem 2 - Oi.

Homem 1 - Oi.

Homem 2 - Vai querer beber alguma coisa?

Homem 1 - Você.

Homem 2 - O que?

Homem 1 - Eu vou querer beber você.

(silêncio)

Homem 2 - Desculpa... O que foi que você disse?

Homem 1 - Nada.

Homem 2 - Ah...

(silêncio)

Homem 1 - E comer? Vai querer?

Homem 2 - Hã? (riem)

Homem 1 - Desculpe.

Homem 2 - Tudo bem. Acho melhor eu ir embora agora. Tchau. (sai)

Homem 1 - Tchau... (silêncio, sai)

terça-feira, 19 de novembro de 2013

camisa estampada

Ele tem por mania camisas estampadas. Camisas de botão, divinamente elegantes. Diz que o charme é a única coisa que lhe resta nestes abafados tempos de solidão. Na verdade, acredito, toda esta beleza é por si um ato de vingança contra o desamor do mundo. Ao menos é o que diz a última estampa de uma aprumada camisa que vestiu hoje de tarde: flamingos e árvores. Existe resistência maior contra o desamor que flamingos e árvores?

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Voltei para a poesia.
Ela havia saído para comprar cigarros. Voltou depois de quase um ano com uma tosse desgraçada e uma xícara de café. Voltou com um quê de tristeza e uma ressaca de alegria, de quem viveu de verdade.
Apesar de mim ela voltou.
Não fui eu que saí, mas eu é que fui perdoado.

série coração



coração travesseiro

descansei minha cabeça no teu colo
sonhei que éramos felizes, mas esqueci


coração garganta

não me desce até hoje
aquelas coisas que dissemos ontem


coração televisão

não se aguentando só, se casou
esqueceu a relação ligada e dormiu sozinha


coração dinamite

nos abraçamos e explodimos
feito homens-bomba


coração líquido

cruzaram os olhos e derreteram
feito água de garoa no guarda-chuva vermelho


coração poema

tocou no ombro do outro
como quem está prestes a virar a página


coração remédio

beijaram-se
mas a respiração estava presa e o gosto não foi sentido


coração mochila

segurei suas mãos, com peso, com força
como quem carrega preciosas inutilidades


coração açúcar

bombearam a relação
até que o ciúme lhe entupiu as artérias


coração vassoura

cansada de varrer todas as dores pra dentro de si
saiu de casa voando, louca, numa noite de lua cheia


coração post-it

não queria que esquecessem que estava namorando
até que o próprio namorado esqueceu-se dele

terça-feira, 25 de junho de 2013

Nós



para o casal Maia Areias


Ah, essas canções que estampam nossa casa
Que em nossos corpos pintam tatuagens
Que são as melodias desse nosso amor

Nós, de gêmeos, de choro, de vela, de amor
Da metade, do inteiro, cobertas de flor
Do acaso direto pra um caso completo

Mais que duas
Muitas caras
Todas as boas
Todas as máscaras

-

Ah, esses meus cabelos que me sobram na cabeça
E essa tua cabeça raspada, aberta de nascença
Esses pensamentos que não cabem no papel

Nós, de gêmeos, de lua, de água, de sal
De açúcar, temperos, de som no quintal
De um caso indiscreto pra um caso repleto

Mais que duas
Muitas caras
Todas as boas
Todas as máscaras




quarta-feira, 27 de junho de 2012

cor.

para M.

Se eu mudo por causa da lua, por causa da luz, por causa do sol
Se eu fico mudo por causa dos olhos
Se eu me confundo por causa da cor

Se o verde pra mim é azul olhando de noite
Se o azul fica logo verde nos dias bem claros

Se o que vejo, muda toda hora
O que sinto, perdura
E colore o dia

quero o teu amor
espero a tua cor
verde de esperar
azul de fome tua

crua ideia assim
teus olhos para mim
seja de que cor
que quero o teu amor

verde que te quero
ver
que te que quero
olhos
ver que quero os teus olhos
verdes ou azuis

azul como o luar
que peço para
ver

os meus olhos estranhos
os meus que são castanhos
pedem para ver
você com tuas cores

cores dos detalhes,
das minúcias, dos lugares
da cor das tuas retinas
da cor do nosso amor

verde que te quero
ver
que te que quero
olhos
ver que quero os teus olhos
verdes ou azuis

azul como o luar
que peço para
ver

terça-feira, 26 de junho de 2012

trecho

, eis que ele resolveu vestir seu cachecol vermelho-sangue. Não quis que percebessem que estava abatido pelo amor que congelou num dos invernos mais terríveis que a Avenida Paulista já vira... Quis ter ao menos um lampejo de dignidade, desses gestos que quem não pode pagar um analista precisa ter para sobreviver nos dias de hoje -

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

amor é em 3D

para André Rosa, e todos os filmes que vimos e veremos juntos


somos um pouco feitos
dos filmes que vimos juntos
daqueles detalhes enquadrados
projetados

daquela poesia de movimento
detalhe, luz, cor, som

somos um pouco feitos
de roteiros antigos
adaptados pela manhã
e originais ao cair da noite

somos feitos
dos filmes que ainda veremos
daquele outro tempo
inventado em tela grande

dos clichês das nossas conversas
das falhas de continuidade
das explosões americanas
dos romances franceses
dos melodramas espanhóis

há em nós, talvez
algum efeito especial
alguma parte de nós anti-natural
terceira dimensão do nosso afeto